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segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Uma aprendizagem ou Fiat lux

Fortaleza São Miguel. Luanda. 2008

"Já se passara o ano. Os primeiros calores da primavera tão antigos como um primeiro sopro. E que a fazia não poder deixar de sorrir. (...) Impossível que essa doçura de ar não traga outras!, diz o coração se quebrando. (...) Impossível que esse ar não traga o amor do mundo! Repete o coração que parte sua secura crestada num sorriso. E nem sequer reconhece que já o trouxe. Esse primeiro calor ainda fresco trazia: tudo. Apenas isso, e indiviso: tudo."




(Clarice Lispector)

Degusto, em Luanda, umas boas páginas de Clarice para recobrar a memória do que li com voracidade 20 anos atrás. Amanheço, uma dúzia de páginas depois, nas Ingombotas sem luz. Era só ligar o gerador, mas nada funciona. É a velha Luanda do tem, mas não há..."Está sem combustível", informam-me. Mas tem no bidon. Motor abastecido e... nada. Sem energia, também não há água. Até que fiat lux! No corre-corre da segunda-feira de urgências, o dia segue com engarrafamento na Sagrada Família. No meio da disputa insana por espaço na via lotada, um condutor desavisado esbarra em nosso Fiesta. Por pouco, não arranca o retrovisor. Pára carro, chama guarda, conversa daqui, conversa dali e finalmente saimos ilesos da confusão. A culpa era do outro, conclui o nosso motorista. Certamente o guardinha concordou.
Desde o fim de semana os sobressaltos multiplicam-se no Solar da Matoso da Camara. Dentro e fora da casa, há pinceladas do paradoxo de cá. Incrível como as agruras de Angola nos ajudam a distinguir quem é quem. Há a solidariedade delicada de quem cedo aprendeu a dividir os brinquedos. Ou jamais os teve só para si. Infelizmente, vigora também o egocentrismo caduco, certamente imortal. E um punhado de lições sobre o que não devemos ser. Afinal, o que fazer se a partilha é imprescindivel à sobrevivência nesta terra do salve-se quem puder? O dever de casa complica-se para os iletrados nos pilares básicos da revolução francesa: liberté, fraternité, igualité...
Nesta hora, o que fazer? O segredo está em saber passar silenciosamente, orienta o grande guru das letras. Fernando Pessoa e os grandes poetas ensinam. "Porque o ter consciência não me obriga a ter teorias sobre as cousas: Só me obriga a ser consciente", confirma um dos heterônimos. O que é esta consciência? Seja o que for, me faz ciente do que me desperta indignação. Na conviência diária do nosso BBA descobrimos as várias faces do humano. Ops! Desumano, talvez. No fim do caminho, sempre nos deparamos com o divisor de águas desta trilha - a aridez em que nos enfiamos ao querer atravessar a velha ponte de ferro do provérbio japonês.

Um comentário:

Andreia Santana disse...

Tem tanta poesia neste relato... tanta que até fere.