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Balzaquiana aguerrida, razoavelmente satisfeita com as escolhas de agora.

terça-feira, 30 de setembro de 2008

Outras palavras




"De algum modo já aprendera que cada dia nunca era comum, era sempre extraordinário. E que a ela cabia sofrer o dia ou ter prazer nele. Ela queria o prazer do extraordinário que era tão simples de encontrar nas coisas comuns: não era necessário que a coisa fosse extraordinária para que nela se sentisse o extraordinário".



(O Livro dos Prazeres)



segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Uma aprendizagem ou Fiat lux

Fortaleza São Miguel. Luanda. 2008

"Já se passara o ano. Os primeiros calores da primavera tão antigos como um primeiro sopro. E que a fazia não poder deixar de sorrir. (...) Impossível que essa doçura de ar não traga outras!, diz o coração se quebrando. (...) Impossível que esse ar não traga o amor do mundo! Repete o coração que parte sua secura crestada num sorriso. E nem sequer reconhece que já o trouxe. Esse primeiro calor ainda fresco trazia: tudo. Apenas isso, e indiviso: tudo."




(Clarice Lispector)

Degusto, em Luanda, umas boas páginas de Clarice para recobrar a memória do que li com voracidade 20 anos atrás. Amanheço, uma dúzia de páginas depois, nas Ingombotas sem luz. Era só ligar o gerador, mas nada funciona. É a velha Luanda do tem, mas não há..."Está sem combustível", informam-me. Mas tem no bidon. Motor abastecido e... nada. Sem energia, também não há água. Até que fiat lux! No corre-corre da segunda-feira de urgências, o dia segue com engarrafamento na Sagrada Família. No meio da disputa insana por espaço na via lotada, um condutor desavisado esbarra em nosso Fiesta. Por pouco, não arranca o retrovisor. Pára carro, chama guarda, conversa daqui, conversa dali e finalmente saimos ilesos da confusão. A culpa era do outro, conclui o nosso motorista. Certamente o guardinha concordou.
Desde o fim de semana os sobressaltos multiplicam-se no Solar da Matoso da Camara. Dentro e fora da casa, há pinceladas do paradoxo de cá. Incrível como as agruras de Angola nos ajudam a distinguir quem é quem. Há a solidariedade delicada de quem cedo aprendeu a dividir os brinquedos. Ou jamais os teve só para si. Infelizmente, vigora também o egocentrismo caduco, certamente imortal. E um punhado de lições sobre o que não devemos ser. Afinal, o que fazer se a partilha é imprescindivel à sobrevivência nesta terra do salve-se quem puder? O dever de casa complica-se para os iletrados nos pilares básicos da revolução francesa: liberté, fraternité, igualité...
Nesta hora, o que fazer? O segredo está em saber passar silenciosamente, orienta o grande guru das letras. Fernando Pessoa e os grandes poetas ensinam. "Porque o ter consciência não me obriga a ter teorias sobre as cousas: Só me obriga a ser consciente", confirma um dos heterônimos. O que é esta consciência? Seja o que for, me faz ciente do que me desperta indignação. Na conviência diária do nosso BBA descobrimos as várias faces do humano. Ops! Desumano, talvez. No fim do caminho, sempre nos deparamos com o divisor de águas desta trilha - a aridez em que nos enfiamos ao querer atravessar a velha ponte de ferro do provérbio japonês.

domingo, 28 de setembro de 2008

Tropical melancolia


"De quase tudo o que importa não se sabe falar"
(Clarice Lispector)




sábado, 27 de setembro de 2008

Fogo amigo


"Antes de cruzar uma velha ponte de ferro, olhe bem"

(Provérbio japonês)


Sobresssalto. Nunca esta palavra me fez tanto sentido quanto agora. Sim, há alguns indizíveis ao cruzar-se a ponte de ferro do provérbio japonês neste reino de Ngola. Como este aviso da árvore (foto), para quem se atreve a verter "água do joelho" em praça pública, gesto comum entre a população de cá. Nada, no entanto, me parece mais desconcertante que esta estranha sensação de eterna intromissão. Jamais vou me acostumar com a idéia de que sou "gringa" por aqui. Pior: uma inimiga silenciosa de quem me gerou.

O certo é que os anos de guerra pela independência e de subjugação fizeram de alguns angolanos pessoas xenófobas, às vezes, hostis. A fúria é proporcional à lembrança do lado mais cruel do colono, o "branco" que os escurraçou. "Pula, pula!", gritavam os miúdos em direção ao nosso carro quando passamos por Benguela quatro meses atrás. Forma pejorativa de designar os brancos, o termo "pula"conserva uma carga intensa de discriminação. Mas nada poderia ser pior a um mestiço ciente da sua ancestralidade que o olhar de estranheza de seu "meio-irmão"...

"Afinal, o que são os mulatos senão reles 'traidores'?", diriam eles. Relutante, na minha insanidade afrodescendente, eu responderia: "Não tenho nada a ver com essa história, no Brasil foi diferente..." Mas não há como fazê-lo. Não há nada a dizer. Nesta hora, conta apenas o que temos feito de nós. E a cor da pele transforma-se num detalhe sem importância, ao menos para mim. O que me importa - e será para sempre assim - é a memória afetiva que faz desses rostos especiais.

Na face das kotas da ilha, estou lá. São iguaizinhas às minhas tias nascidas no recôncavo, rendeiras de mão cheia, que insistiam em me ensinar o ofício ancestral. Os segredos dos bilros eu jamais aprendi. Mas tudo isso me ergueu. Sou feita desses retalhos de cultura. Um mosaico afro-luso-índiodescendente. Nos panos das senhoras de Luanda, estou lá. No colorido das roupas, estou lá. Nos colares enormes, estou lá. Na estética over, ali estou. As indumentárias, o torso, os cabelos, as tranças...Estou em África e Ela em mim.

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Releitura étnica




"Só são ruins e perigosas as tristezas que carregamos em meio às pessoas para dominá-las; como doenças que são tratadas de modo superficial e leviano, elas apenas recuam e, após uma pequena pausa, irrompem ainda mais terríveis. Essas tristezas se acumulam no íntimo e constituem a vida, constituem uma vida não vivida, desenhada, perdida, de que se pode morrer.

Se nos fosse possível ver além do alcance do nosso saber, e ainda um pouco além da obra preparatória do nosso pressentimento, talvez suportássemos as nossas tristezas com mais confiança do que nossas alegrias. Pois elas são os instantes em que algo novo penetrou em nós, algo desconhecido; nossos sentimentos se calam em um acanhamento tímido, tudo em nós recua, surge uma quietude, e o novo, que ninguém conhece, é encontrado bem ali no meio, em silêncio".

(Rilke - Cartas a um jovem poeta)


Habita o novo neste meu silêncio interno. Conquistei-o à custa de uma certa confiança, meio trôpega, é verdade, ao suportar as tristezas. A que nos entrega a esse novo que Rilke tão bem apresenta ao jovem poeta Franz Xaver Kappus. E o novo é alegre, lúdico, quase infantil. Sem medo do vexame de desafinar na brincadeira de cantarolar lembranças num karaokê.

Em Angola, o novo é a releitura de mim. Em Luanda, meu sangue africano guerreia com o índio e o branco ancestrais, ressignifica minha identidade. E pára de brigar. Ontem, em meio ao incomensurável prazer de um petit gateau luandense, toquei neste ponto. E, como sempre, vou fazendo retoques neste rascunho. Menos étnica, aceito todos os eus. Sou de todas as cores.

O colorido étnico avizinha-se. Embora, à exceção desta viagem antropológica, não saiba precisar o que há no silêncio interno. Esta outra que renasce, enquanto esgotam-se os últimos tempos balzaquianos. Vou aos poucos preparando o terreno para este renascer, quase diário. Certamente me levará de volta aos pequeninos prazeres nossos de cada dia. Do tempo em que, em geral, somos felizes e sequer sabemos. Por que, agora sei, etnia não passa de um mero detalhe, homo sapiens ainda ignorantes a respeito da delicadeza da nossa condição.

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Cidade do Sol


É só isso. Sóis d'África. E me basta.

Vidas mulatas




Quinta-feira pós clube da Luluzinha em Luanda.

Tateio, em meio à sonolência desta manhã de trabalho honesto, as ferramentas do blogger, ainda meio "barbeira" nesta estrada cyber. Persisto. A velocidade da net não ajuda. Mas, enfim, cá estou, a postar trechos do desassossego de Pessoa. E do meu próprio...

O caminho de agora é o da ressignificação. Rever rotinas antigas, repensar-se. Foi preciso África, solidão e esta árdua tarefa do reencontro... Longe da superfície, mergulhada em mim, redescubro prazeres antigos, como apreciar pequeninas coisas. Fazer fotos de detalhes das ruas, gargalhar com as amigas, cúmplices desta urbanidade louca e contraditória.

Impossível sair ilesa desta experiência. Há cicatrizes, arranhões e também um punhado de experiências dilacerantes. Outras alegrias...E uma delicada sensação de pertencimento.

Uma identidade inédita avizinha-se. Estou outra. Não é possível ainda perceber o que há de novo nisso tudo. Mas há. Agora sou outras. Inteira, refeita, pronta a novas trilhas. Inclusive esta, via internet.

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Gosto de Pessoa na pessoa


"Como todos os grandes apaixonados, gosto da delícia da perda de mim, em que o gozo da entrega se sofre inteiramente. E, assim, muitas vezes, escrevo sem querer pensar, num devaneio externo, deixando que as palavras me façam festas, criança menina ao colo delas."








(Livro do Desassossego - Pessoa)